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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Dom Casmurro

DOM CASMURRO
(Machado de Assis )
Prof. Teotônio Marques Filho
http://www.olutador.org.br
INTRODUÇÃO
Maior escritor brasileiro de todos os tempos, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) era um mestiço de origem humílima, filho de um mulato e de um lavadeira portuguesa dos Açores. Moleque de morro, magro, franzino e doentio, o maior escritor brasileiro se fez sozinho, adquirindo a sua vasta e espantosa cultura de forma inteiramente autoditada.
Ao estudar a obra de Machado de Assis, a crítica divide-a em duas fases bem distintas cujo marco deliminatório é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas publicado em 1881. Até essa data, a obra machadiana é marcante romântica, e nela sobressai poesia, conto e romances como Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Tais obras pertencem pois, à chamada primeira fase.
A partir de 1881, com a publicação das Memórias, Machado de Assis muda de tal forma que Lúcia Miguel Pereira, biógrafa e estudiosa do escritor, chega a afirmar que "tal obra não poderia ter saído de tal homem", pois, "Machado de Assis liberou o demônio interior e começa uma nova aventura": a análise de caracteres, numa verdadeira dissecação da alma humana. É a Segunda fase, fase perpassada dos ingredientes do estilo realista.
Além de contos, poesia, teatro e crítica, integram essa fase os romances seguintes, entre os quais está o nosso Dom Casmurro (1900): Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), seu último livro, pois morre nesse mesmo ano. Toda essa obra está ligada ao estilo realista, embora seja correto reconhecer que um escritor da categoria ao estilo realista, embora seja correto reconhecer que um escritor da categoria de Machado de Assis não pode ficar preso às delimitações de um estilo de época.
Conforme observa Helen Caldwell, Dom Casmurro é "talvez o mais fino de todos os romances americanos de ambos os continentes" ("perhaps the finest of all American novels of either continent")
Construído em flash-back, o protagonista masculino (Dom Casmurro), já cinqüentão e solitário, tenta "atar as duas pontas da vida" (infância e velhice), contando a história de sua vida ao lado de Capitu, a qual acaba tomando conta do romance, dada a sua força e o seu mistério.
ENREDO DE DOM CASMURRO
A seguir, para que se possa acompanhar melhor a análise a que vamos proceder neste trabalho, transcrevemos aqui o enredo elaborado por Marisa Lajolo, em "Literatura comentada", da Abril Editora:
Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romance mais conhecidos de Machado. Narra em primeira pessoa a estória de Bentinho que, por circunstância várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Sua estória é a seguinte:
Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.
A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já o namoro com Capitu, filha dos vizinhos. Apesar de comprometido pela promessa, também D. Glóri a sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.
Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.
Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu enterro, Bentinho julga estranha a forma qual Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. Á medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se na separação do casal.
Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já mocó, volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre e antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em usas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever de sua vida (o romance).

ORGANIZAÇÃO / ESTRUTURA
1) Dom Casmurro é narrado em primeira pessoa pelo protagonista masculino que dá nome ao romance, já velho e solitário, desiludido e amargurado pela casmurrice, conforme lhe está no apelido. A visão, pois, que temos dos fatos é perpassada da sua ótica subjetiva e unilateral: "tudo que sabemos do seu passado, de seus amores, de Capitu, só o conhecemos do seu ângulo" - observa o Prof. Delson Gonçalves Ferreira em estudo sobre Dom Casmurro. Em conseqüência disso, paira dúvida sobre o adultério de Capitu - dúvida que não se tem dissipado ao longo dos anos.
2) O romance , como já observamos, é construído a partir de um flash-back, por um cinqüentão solitário e casmurro, "à la recherche de temps perdu" ("à procura do tempo perdido"), o qual procura "atar as duas pontas da vida" ( infância e velhice). Perpassa. Pois, o romance uma atmosfera memorialista, dando a impressão de autobiografia, a qual, com o se sabe, não tem nada a ver com Machado de Assis.
3) O título do livro ("Dom Casmurro") reflete uma das características mais marcantes do protagonista masculino no crepúsculo da existência: a visão amarga e doída de quem foi traído e machucado pela vida, e, em conseqüência disso vai-se isolando e ensimesmando. "Não consultes dicionários, Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo" (Cap. I).
4) O romance se compõe de 148 capítulos curtos, com títulos bem
precisos, que refletem o seu conteúdo. A narrativa vai lenta até o capítulo XCVII, a partir do qual se acelera, como declara o próprio narrador, ao dar-se conta da sua lentidão: "Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegares ao final" (Cap. XCVII).
5) Assim, pois, até o capítulo XCVII, quando o narrador sai do seminário, "com pouco mais de dezessete anos", focaliza-se, em câmera lenta, a infância e a adolescência, dada necessidade do narrador traçar o perfil dos protagonistas da estória (Bentinho e Capitu), revelando, desde as entranhas, o caráter e as tendências de cada um: afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom Casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: "Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca" (Cap. CXLVIII).
6) Quanto ao lugar em que decorre a ação, trata-se do Rio de Janeiro da época do Império: há inúmeras referências a lugares, ruas, bairros, praças, teatros, salões de baile que evocam essa cidade imperial. Por outro lado, há também ligeiras referências a São Paulo, onde foi estudar Direito o ex-seminarista Bentinho, e também à Europa onde morre Capitu, e mesmo aos lugares sagrados, onde morre Ezequiel (Jerusalém).
7) Cronologicamente falando, a narrativa decorre durante o segundo Império, detendo-se mais o autor na inicia pela razão exposta no item 5. Contudo, construído sob a forma de flash-back; “o que domina no livro não é esse tempo cronológico; é o psicológico, que se passa dentro das personagens, dentro da própria vida”, observa o Prof. Delson Gonçalves.
Debruçado sobre a reconstrução da longínqua inicia de outrora, o solitário e magoado Dom Casmurro vai reconstituindo o “tempo perdido” de sua existência, filtrando os fatos sob sua ótica de cinqüentão amargurado, revivendo a vida subjacente, que jaz nas suas entranhas.
PERSONAGENS
Machado de Assis sempre foi um grande “arquiteto de personalidades” e, na sua imensa galeria de personagens famosas, Capitu se destaca como uma das mais bem criadas por ele.
1) Capitu. Ao longo dos anos, Capitu tem desafiado a crítica com seu enigma, sutilmente criado por Machado de Assis. Até hoje, ainda devora quantos tentam decifrá-la, pairando a dúvida: Capita traiu ou não traiu Bentinho? A pergunta continua sem resposta, pois a versão que temos para julgá-la nos é dada por um narrador suspeito - um marido envenenado pelo ciúme e de imaginação bastante fértil, como revelam muitas passagens do livro. Por outro lado, revelando um dos traços mais marcantes da psicologia feminina - a capacidade de dissimu1ação de que é dotada a mulher, Capitu, com seus “olhos de ressaca” e de “cigana oblíqua e dissimulada”, contribui ainda mais para fortalecer a dúvida: ela sabe sair-se bem de situações difíceis - ela sabe dissimular, como no episódio do penteado e da inscrição no muro.
Inteligente, prática, personalidade forte e marcante (ela era muito mais mulher do que Bentinho, homem), Capitu acaba se tomando a dona do romance: forma, inicialmente, com o narrador, um “duo terníssimo” e, depois, possa a constituir o centro do drama do protagonista masculino, com a entrada em cena de Escobar (“trio") e de Ezequiel (“quattuor”).
No final, acusada pelo marido enciumado, revela-se nobre e altiva ao não responder as acusações. O seu silêncio confere a ela grandeza e contribui mais ainda para acentuar a dúvida que paira sobre seu adultério.
2) Dom Casmurro. O perfil do protagonista masculino pode ser acompanhado em três fases distintas: Bentinho, Dr. Bento Fernandes Santiago e Dom Casmurro.
Bentinho revela-se unia criança/adolescente marcado pela timidez, sem muita iniciativa e bastante dependente da mie. Tinha uma imaginação fertilíssima, como no capitulo XXIX (O Imperador). Levado para o seminário para ser padre (promessa da mãe - D. Glória), quando trava amizade com Escobar, Bentinho, com ajuda de J Dias, abandona a carreira sacerdotal e ingressa na Faculdade de Direito, em São Paulo.
Formado aos vinte e um anos, ele é agora o Dr. Bento F. Santiago, bem posto na vida, financeiramente rico (riqueza muito mais de herança do que de trabalho), casado e feliz com Capitu, quando canta na ópera da vida um “duo terníssimo”.
Depois, surge o filho (Ezequiel) e começam a aparecer os problemas: o “duo ternissimo” da ópera da vida vai cedendo lugar ao melodrama do “trio” e “quattuor” das dúvidas e incertezas. É a vez da fase casmurra, marcada pela solidão, pela mágoa e pela amargura.
3) D. Glória. Mãe de Bentinho, cedo assume as rédeas da casa com a morte do marido, o qual deixa a família bem amparada. Ao longo do romance, D. Glória, revela-se religiosa, apegada às tradições e ao passado, conforme observa o narrador: “Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas maneiras, velhas idéias, velhas modas Tinha o seu museu de relíquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas moedas de cobre...”
D. Glória era, pois, unia boa senhora - uma santa, santíssima como diria o José Dias.
Morando com D. Glória destacam-se na narrativa Tio Cosme, viúvo como ela, e Prima Justina, igualmente viúva: “era a casa dos três viúvos”; além desses, pode entrar aqui também o Padre Cabral, muito amigo de Tio Cosme, com quem ia jogar à noite.
4) José Dias. Era agregado da família e gostava muito de Bentinho. Bajulador e de idéias chochas, realçava-as com superlativo, que passa a ser sua marca registrada: “José Dias amava os superlativos” e usa-os com freqüência ao longo do romance, inclusive na hora de morrer quando se refere ao dia como “lindíssimo “.
5) Escobar. Muito amigo de Bentinho (colegas de seminário), Escobar era casado com Sancha e revela-se um tanto quanto misterioso: teria participado do “trio” cantado por Dom Casmurro, formando o triângulo amoroso da suspeita do narrador? Fica a dúvida e a mágoa, como revela Dom Casmurro no capitulo final, já que Escobar foi tragado pela morte (afogamento), sem possibilidade de defender-se da acusação.
6) Ezequiel. É o filho de dom Casmurro com Capitu, pejorativamente chamado pelo pai dc “filho do homem”. Gostava de imitar e imitava muito bem sobre-tudo Escobar. Vitima da suspeita do pai, acaba sendo afastado, assim como a mãe, para a Suíça, tendo morrido perto de Jerusalém, como arqueólogo. Além desses, destacam-se ainda o Pádua, pai de Capitu, o qual era um modesto funcionário público, e sua mulher, Fortunata, muito econômica, também forte e cheia como a filha Capitu.
ESTILO DO AUTOR/LINGUAGEM
O estilo de Machado de Assis, marcado pela sobriedade, correção e concisão, apresenta traços inconfundíveis, que vamos alistar.
1) A linguagem de Machado de Assis é marcadamente acadêmica: clássica, bem cuidada, regida pelas normas de correção gramatical.
Entretanto, em alguns pontos, tal como ocorre no Modernismo, ele registra aspectos típicos da língua da personagem, como nesta fala de um vendedor de cocada:
- Sinhazinha, qué cocada hoje?
- Cocadinha tá boa...
2) Outra marca do estilo machadiano é a tendência para a frase sentenciosa e proverbial, como aquela em que compara a vida com uma ópera, atribuída ao tenor Marcolini: “A vida é uma ópera”.
3) Outro aspecto interessante é o uso freqüente de alusõees, referências e citações que vão como que confirmando as suas idéias e pensamentos, o que, por outro lado, revela bem a espantosa cultura e erudição de Machado de Assis, adquiridas de forma autodidata como vimos.
4) Ao longo das suas narrativas, Machado de Assis (ou o narrador que conduz a estória), sempre gostou de estabelecer uni diálogo com o(a) leitor(a): conversa com ele(a), dá-lhe conselhos, pondera e explica: “Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina...” (Cap. CXLVIII).
5) Outra coisa que chama e atenção são as suas personagens, quase sempre bem situadas na vida, sem necessidade de trabalhar; aliás, o único trabalho que fazem é serem personagens de Machado de Assis, como observou alguém. Por outro lado, movem-se lenta e pausadamente, sendo quase sempre objeto de observação e análise do autor: são gente muito mais de reflexão do que de ação.
6) Apresentando, via de regi-a, uma visão amarga, pessimista e niilista da vida humana, Machado de Assis sempre se revela sarcástico e irônico na sua obra: desmascara o ser humano na sua hipocrisia e torpezas, desnudando-o nas suas entranhas; desmistifica crenças e instituições sacralizadas pelos tempos; questiona o sentido da vida. Tudo se desfaz e se desmorona ante o seu olhar aquilino e arrasador: até mesmo uni casamento que parecia sólido e embasado no pilar do amor.
ESTILO DE ÉPOCA
Como observamos no início (introdução), Dom Casmurro se enquadra na segunda fase machadiana, na qual sobressaem traços do estilo realista.
1) Os romances realistas sempre se fundamentam num caso de adultério, como se pode ver nos diversos autores da época (Eça de Queirós, Aluísio Azevedo etc). Em Dom Casmurro é exatamente a suspeita de adultério que sustenta o enredo do romance. Tudo se constrói em torno desse possível adultério de Capita.
2) Entretanto, não há uma preocupação excessiva em contar a estória, preocupação maior é com a análise, uma análise dissecante e profunda, em que o escritor procura desnudar a personagem e revelar as suas entranhas. Sem dúvida por isso, Machado de Assis retroage à infância (ab ovo), tentando buscar a origem do problema focalizado.
3) Por essa razão, a narrativa é lenta, pausada - anda bem devagar. Aliás, o próprio Machado de Assis reconhece isso, ao declarar em passagem famosa de Memórias póstumas de Brás Cubas que vale também para Dom Casmurro: “...o livro anda devagar; tu (conversa com o leitor) amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...”
4) Embora adote a primeira pessoa como técnica narrativa, o narrador de Dom Casmurro se coloca à distância: no extremo da vida (velhice), o protagonista masculino reconstitui o seu passado, assumindo assim um ângulo de visão marcado pela objetividade. Embora seja personagem da estaria e participe dela, o narrador coloca-se fora e ausente enquanto narra e reconstitui os fatos (“flash-back”).
ASPECTOS TEMÁTICOS MARCANTES
Muitos aspectos temáticos podem ser detectados na obra de Machado de Assis, que nunca foi escritor de grandes teses. É um estudioso da alma humana, que ele procura analisar a fundo e de foi-tua dissecante. Ao longo de Dom Casmurro muitas idéias interessantes vêm apresentadas.
1) Apoiando-se numa frase de um tenor, Machado de Assis declara que “a vida é uma ópera”. Com efeito, a existência humana é perpassada de fases, o que evoca bem, como a vida de Dom Casmurro, os atos de uma ópera: há sempre uma fase de “solo”, marcado por hesitações e buscas, e unia fase em que se vive um “duo terníssimo”, cm que o eu e o outro (Bentinho e Capitu) se aproximam e se harmonizam; depois a coisa se complica com a presença de um terceiro (Escobar), que se instala para formar o triângulo que desfaz a unidade; enfim surge um quarto (Ezequiel), que esfacela de vez o “duo” da união harmoniosa de outrora. Tudo se vai e se esvai pela vida, e na alma humana vão ficando as mágoas e ressentimentos dos sons plangentes que se desfazem na solidão abissal.
2) Tal como ocorre em “Conto de escola” (conto machadiano que integra o volume Várias Histórias), Machado de Assis vê a infância como o pilar que sustenta o adulto: o caráter e as tendências se forjam no forno da infância. Como ele dizem Memórias Póstumas, “o menino é pai do homem”. É o que se vê em Dom Casmurro. O autor dedica praticamente meio romance à infância, com o fim de mostrar “ab ovo” o embrião do caráter das personagens principais e concluir que a Capita menina estava dentro da adulta, “como a fruta dentro da casca”.
3) Ao apresentar o perfil de Capitu, Machado de Assis revela traços da psicologia feminina: a arte de dissimular e a capacidade que tem a mulher para sair-se bem de situações embaraçosas, como, aliás, se pode ver também em Quincas Borba com Sofia. e outras obras machadianas. Essa capacidade de dissimulação de Capitu, sem dúvida, contribui enormemente para deixar no leitor de Dom Casmurro a dúvida que paira no final do romance: houve ou não houve adultério?
4) Apesar do “duo terníssimo” de Bentinho e Capitu, Dom Casmurro é um romance de velhos e solitários (D. Glória, Tio Cosme, Pe. Cabral, José Dias, Prima Justina, além do nosso casmurro narrador). Como é próprio de Machado de Assis a velhice no livro é perpassada de uma visão amarga e melancólica, dominada por magoas e ressentimentos. Sem dúvida, é licito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca na casmurrice e na solidão.
5) Tudo vai-se desfazendo com o crepúsculo da existência humana: a graça, a beleza, as flores de antanho; pela vida vazia, vão ficando as lágrimas, a cinza, o nada. Vista de uma perspectiva pessimista (como é freqüente em Machado de Assis), a velhice é perpassada de amargura.
solidão e sensação de vazio e perda qual se acentua e dói ainda mais com a consciência da irreversibilidade do tempo.
6) E impressionante em Dom Casmurro a ação devastadora do tempo sobre coisas e pessoas. Poucos ficam, corno o desencantado Dom Casmurro, para contar a história: todos são devorados pela ação voraz e demolidora do tempo - todos morrem. E quem fica vivo, como Dom Casmurro, é atormentado pela mágoa pelos ressentimentos e sobretudo pela solidão catacumbal da casmurrice e do desencanto.
7) Como é próprio da literatura realista (e sobretudo de Machado de Assis) um dos propósitos do livro é desmascarar o ser humano, revelando a precariedade e a hipocrisia das relações sociais. Em entrevista à Folha de São Paulo (3/8/91) com o ensaista inglês John Gledson, o Prof. Luiz Roncari (autor de Assim não brinco mais) observa e pergunta: “A questão do adultério, traição ou não, só ganha importância mesmo no último terço do livro, na parte efetiva da intriga, mas a mentira está muito presente em todo o livro. A verdadeira questão não seria: como a mentira é fundamental para a manutenção das relações sociais, das relações humanas?”
8) Em suma, em Dom Casmurro pode-se ver um perfil da sociedade da época (e certamente de hoje), corno afirma o ensaísta John Gledson no prefácio de seu livro Machado de Assis: impostura e realismo: “Este livro procura descobrir as intenções de Machado em Dom Casmurro. Seu engenho e inteligência superiores mio são postos em dúvida; mas espero mostrar que o que lhes confere a agudeza, a lâmina pontiaguda, é a sua visão da sociedade na qual se criou, na qual teve muito sucesso profissional, mas que - em um nível que só encontra expressão em suas maiores obras - talvez detestasse”.
9) Outro ponto que se destaca em Dom Casmurro é a religião, a começar pelo próprio nome do narrador (Bento, Bentinho) e Capitu, que “está bem próximo de capeta”, conforme observa o Prof. Antônio Dimas, da USP. Sem perfilar unia linha anticlericalista (tão em voga na época), “a gente não pode deixar de levar em conta a religião no livro”, diz o Prof. John Gledson. “E o único romance de Machado onde a religião católica aparece com tanta importância. Em Helena, a religião é um pouco abstrata Mas aqui é o catolicismo, com suas Aves-Marias, seus Padres-Nossos, com seus santos, seminários etc. Ele cita a Bíblia de um jeito terrível As vezes cita São Pedro (sic) no seu momento mais anti-feminista - em que as mulheres devem estar sujeitas a seus maridos -, para reforçar o seu ponto de vista. Ou seja, é um livro que retrata o catolicismo e retrata mal, evidentemente. Isso está na linha de Eça de Queirós só que mostra como a religião funciona na vida Intima das pessoas”.
10) Confrontando com os romances românticos, que nos passam uma
visão idealizada do amor e do casamento (como é próprio do Romantismo), Dom Casmurro mostra o lado terrível, contundente, patético (e real?) do casamento, do amor e da vida. Embora a vida humana possa ter os seus encantos (é perfeitamente possível o “duo terníssimo” do casamento, da amizade - das relações sociais), a visão apresentada por Machado de Assis acerca da vida (especialmente do casamento, do amor e da amizade) é amarga e niilista, filtrada pela ótica de uni narrador casmurro, ressentido e magoado pelas trapaças da sorte. Distante do “happy end” dos romances românticos, cm que o casamento é uma verdadeira comunhão de amor, em Dom Casmurro o casamento é simplesmente uma comunhão de bens, que “dura quinze meses e onze contos de réis”, como disse o cético Brás Cubas.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A cidade e as serras – Eça de Queirós - Comentários

Análise da obra
Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o romance A Cidade e as Serras foi desenvolvido a partir da idéia central contida no conto Civilização, datado de 1892. É um romance denso, belo, ao longo do qual Eça de Queirós ironiza ferrenhamente os males da civilização, fazendo elogio dos valores da natureza.

É uma obra das mais significativas de Eça de Queirós. Nela o escritor relata a travessia de Jacinto de Tormes, um ferrenho adepto do progresso e da civilização - da cidade para as serras. Ele troca o mundo civilizado, repleto de comodidades provenientes do progresso tecnológico, pelo mundo natural, selvagem, primitivo e pouco confortável, no sentido dos bens que caracterizam a vida urbana moderna, mas onde encontra a felicidade, mudando radicalmente de opinião.
A Cidade e as Serras preconiza uma relação entre as elites e as classes subalternas na qual aquelas promovessem estas socialmente, como faz Jacinto ao reformar sua propriedade no campo e melhorar as condições vida dos trabalhadores.

Por meio do personagem central, Jacinto de Tormes, que representa a elite portuguesa, a obra critica-lhe o estilo de vida afrancesado e desprovido de autenticidade, que enaltece o progresso urbano e industrial e se desenraiza do solo e da cultura do país.

Na obra, a apologia da natureza não pode ser confundida com o elogio da mesmice e da mediocridade da vida campestre de Portugal. Ao contrário, trata-se de agigantar o espírito lusitano, em seu caráter ativo e trabalhador. Assim, podemos afirmar que depois da tese (a hipervalorização da civilização) e da antítese (a hipesvalorização da natureza), o protagonista busca a síntese, ou seja, o equilíbrio, que vem da racionalização e da modernização da vida no campo.

Um argumento para tal interpretação está no fato de que, quando se desloca para a serra, Jacinto sente uni irresistível ímpeto empreendedor, que luta inclusive contra as resistências dos empregados ao trabalho.
Concluindo, Jacinto de Tormes, ao buscar a felicidade, empreendeu uma viagem que o reencontrou consigo mesmo e com o seu país. Tal viagem, que concomitantemente é exterior e interior, abarca a pátria portuguesa e se reveste de uma significação particular, pode ser lida como um processo de auto-conhecimento: um novo Portugal e um novo português se percebem nas serras que querem utilizam da cidade o necessário para se civilizarem sem se corromperem.
Podemos considerar A Cidade e as Serras um romance no qual se destaca a categoria espaço, na medida em que os ambientes são fundamentais para a compreensão da história, destacando-se os contrastes por meio dos quais se contrapõem. Assim, a amplidão da quinta de Tormes contrasta com a estreiteza do universo tecnológico do 202, o que aponta para a oposição entre o espaço civilizado e o espaço natural, presente em todo o romance.
Foco narrativo
Escrito em primeira pessoa, A Cidade e as Serras, como a maioria dos romances de Eça de Queirós, há um narrador-personagem, José Fernandes, o qual não se confunde com o protagonista da obra, Jacinto de Tormes. Este narrador coloca-se como menos importante do que o protagonista, como podemos perceber, por exemplo, no início da obra.

Nos primeiros parágrafos do livro o narrador, em vez de apresentar-se ao leitor, coloca-se em segundo plano para apresentar toda a descendência dos de Tormes, até aparecer a figura de Jacinto. Além disso, dá-lhe tratamento diferenciado, parecendo idealizar Jacinto, na medida em que o chama de "Príncipe da Grã-Ventura", conforme apelido estudantil do protagonista.
Personagens
Uma particularidade da personagem José Fernandes, está na importância que dá aos instintos, sobrepondo-os à sua capacidade de sentir ou de pensar. Assim, tanto desilusões amorosas quanto preocupações sociais são tratadas com almoços extraordinários. Ao longo do romance ele procura provar o engano que as crenças civilizatórias de seu amigo, Jacinto de Tormes, podem conduzir, embora o admire exageradamente.
Jacinto de Tormes é filho de uma família de fidalgos portugueses, mas nascido e criado em Paris. Se cerca de artefatos da civilização e de tudo o que a ciência produz de mais moderno. Entretanto, o excesso de ócio e conforto o entedia, a ponto de fazê-lo perder o apetite, a sede lendária, a robustez física e a disposição intelectual da juventude. Levado pelas circunstâncias a conhecer suas propriedades nas serras portuguesas, apaixona-se pelo campo, lá introduzindo algumas inovações.

Mesmo em contato com a natureza, Jacinto não abandona alguns de seus hábitos urbanos. Desenha futuras hortas, planeja bibliotecas na quinta, traz banheiras e vidros desconhecidos dos habitantes do lugar. Por fim, manda instalar uma linha telefônica nas serras, o que comprova que no fundo não houve grandes modificações em suas crenças.
Ele representa não apenas uma crítica do escritor à ultracivilização, mas também a utopia de um novo Portugal, uma nova pátria, capaz de modernizar-se, sem perder as tradições e as particularidades nacionais.

Trata-se, enfim, de um D. Sebastião atualizado pelo socialismo e pelo positivismo. A trajetória percorrida pelo protagonista Jacinto de Tormes deve-se em grande parte, às instâncias e insistências de José Fernandes, que ao mesmo tempo é contador da história e um de seus personagens principais.
Os personagens ligados à vida no campo caracterizam-se por atitudes simples e transparentes, embora tradicionalistas. Um exemplo pode ser o avó de Jacinto, Gatão, cuja ligação ancestral com o referido ambiente manifesta-se pela total devoção à realeza absolutista, que o leva a abandonar Portugal depois da expulsão de D. Miguel.

Entretanto, a melhor representação desse grupo de personagens da obra pode ser atribuída a Joaninha, a mulher por quem Jacinto se apaixona, graças a seus atributos naturais e sua simplicidade de espírito.
Enredo
O narrador centraliza seu interesse na figura de um certo Jacinto, descrevendo-o como um homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no 202 dos Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de Portugal, onde a família possui extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira, que lhe rendem bem.

O avô de Jacinto, também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galeão, era um fanático miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se voluntariamente em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a morte do marido, não regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o franzino e adoentado Cintinho que se casou com a filha de um desembargador, nascendo desta união nosso protagonista.
Desde pequeno Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade. Aos 23 anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes bem tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado pelos companheiros de "Príncipe da Grã-Ventura".

Positivista animado, Jacinto defendia a idéia de que "o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado". A maior preocupação de Jacinto era defender a tese de que a civilização é cidade grande, é máquina e progresso que chegavam através do fonógrafo, do telefone cujos fios cortam milhares de ruas, barulhos de veículos, multidões... Civilização é enxergar à frente.
Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Nada mais! Se eu porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo, por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geléia e caixas de ameixa seca. Concluo, portanto, que é uma mercearia.

Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda!

Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência da visão. E desde já, pelo lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreende o meu princípio.

Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos cercar de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver.
Em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães e, somente após sete anos de vida na província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos Campos Elíseos.

O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois andares do palacete; no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios de artifício; e, enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fernandes visita uma enorme biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos possíveis, dos mais renomados autores às mais diferentes ciências. A visita termina com uma refeição em que foram servidas as mais sofisticadas iguarias e um convite de Jacinto ao narrador que ele se hospede no 202.
Primeiros desencantos
José Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas atividades o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a inutilidade de muitas coisas da sua tão decantada civilização.

Nos raros momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho das ruas o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido desencanto.

Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de ânimo de Jacinto: o rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o quarto, inundando os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas, alguns inclusive com um riso sarcástico, com o do Grão-duque Casimiro, dizendo que não mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de salvação.
As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque, Jacinto já não agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o uso dos diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o microfone...

O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e os convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou não indo para a mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um camarada não o comoviam, como muito remotas, inatingíveis, separadas da sua sensibilidade por imensas camadas de algodão.

Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão brava mente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a força e a matéria!
Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que espantou o narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que era acometido: o patrão sofria de "fartura".
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil.

Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada!

Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramos de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala, conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta... Raramente (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos.

Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda.

Também lentamente se despegava de todas as sua convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigos dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!

Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafamento, de atulhamento!
Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem cinzenta e fria, motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo 202, com todas as suas sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade não passava de uma ilusão.
(...) uma ilusão! E a mais marga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de chumbo sem sangue, sem febre, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado , mal pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão!

Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranqüilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto?

Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam!

Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho.

E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote!

(...) Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de idéias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...)

Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!
Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal, indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão, enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando aos pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser necessário um novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.
Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que ele a cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela existem! (...) A tua Civilização reclama incansavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. (...)
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade, estendida na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde, filosofando - considerando que para esta iniqüidade não havia cura humana, trazida pelo esforço humano.

Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abandonarão ou afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são impotentes os prantos dos humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da Terra novamente posta num Messias!...
De Schopenhauer ao Eclesiastes: pessimismo
Como já havia planejado, o narrador partiu para uma viagem pela Europa e, ao retornar, procurou o amigo e tentou descobrir o que lhe passava na lama, pois encontrou-o mais pessimista que nunca, depressão revelada pelas leituras do Eclesiastes e do filósofo pessimista Schopenhauer.

Nestas leituras, encontrava um certo amparo aos comprovar que todo mal era resultante de uma lei universal e, a partir daí, encontrou uma grata ocupação - maldizer a vida. Ao mesmo tempo, sobrecarregou sua existência com fervores humanísticos. Mas de nada adiantava, pois Jacinto estava desolado.

No inverno escuro e pessimista, Jacinto acordou certa manhã e comunicou a José Fernandes que esta de partida para Tormes. Decidiu viajar ao receber uma carta de Silvério, seu procurador, que dizia estarem concluídos os trabalhos de reerguimento da capela para onde seriam transladados os restos mortais de sues avós que ele não conhecera, mas que o 202 estava cheio de recordações.
Os preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização para as serras. Jacinto encaixotou camas de penas, banheiras, cortinas, divãs, tapetes, livros, despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas serras. Enquanto isso; renascia nele o amor pela cidade.
Partiram os dois amigos de volta a Portugal. As cidades passavam pelas janelas do trem: da França para a Espanha, da Espanha para Portugal... Tomado por uma suave emoção, José Fernandes estava feliz em rever a pátria; Jacinto, aborrecido e enfadado principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram em compartimentos errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o intuito de aclamar o amigo, diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E ficaram os dois só com a roupa do corpo. Enfim, chegaram a Tormes.
...e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina estação de Tormes, termo ditodoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas, com sues vistoso girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assombreando o pátio, e por trás, a serra coberta de velho e denso arvoredo.
Desembarcaram em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pimenta, chefe da estação. Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por Silvério, o procurador de Jacinto em terras portuguesas. Começaram então outros desastres da viagem. Silvério não os aguardava: havia partido há dois meses para o Castelo de Vide. Os criados Grilo e Anatole, aparentemente estavam com as 23 malas em outro compartimento, não foram encontrados, o trem apitou e partiu, deixando os dois sem nada.

Não havia cavalos para atravessarem a serra, pois Melchior, o caseiro, não os esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes uma égua e um burro e ambos seguiram serra cima, esquecendo, por alguns instante, os infortúnios passados enquanto contemplavam a beleza da paisagem.

O pior ainda estava por acontecer: os caixotes despachados de Paris há quatro meses não haviam chegado, e o mais civilizado dos homens estava totalmente à mercê das serras. Como ninguém os esperava, a casa não estava pronta para recebê-los, a reforma acontecia devagar, os telhados ainda continuavam sem telhas, a vidraças sem vidros. Zé Fernandes sugeriu que rumassem para a casa de sua tia Vicência em Guiães e Jacinto retrucou que ia mesmo para Lisboa.
Melchior arranjou como pôde um jantarzinho, caseiro e simples, longe das comidas sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida que serviu para matar gostosamente a fome dos viajantes. O senhor de Tormes regalou-se com o jantar que lhe parecera, à primeira vista, insuportável; e o caseiro, diante das manifestações de regozijo perante a comida, pensou que seu senhor passava fome em Paris.
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos.

Diante do louro frango assado no espeto e da salada aquele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - "É divino!" Mas nada o entusiasmava como um vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo.

Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável desta serras?
Após o jantar, ambos ficaram contemplando o céu cheio de estrelas, passaram a ver os astros que na cidade não se dignavam ou não conseguiam observar. O narrador ia-se deixando levar por um contato tão estreito com a paisagem, que em breve surgia uma identificação total do homem com a natureza e em tudo percebia-se Deus, num claro processo panteísta muito comum entre os romântico e que Eça passou a assumir.
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
- Não sei.

Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca o possuía trezentos e oito tratados sobre astronomia, e o saber assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã?

Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo, governadas pela mesma lei, rolando para o mesmo fim...

Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo corpo, onde circula como um sangue, o mesmo deus. E nenhum frêmito de vida, pormenor, passa numa fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais.

Quando um sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, embaixo na horta, sente um secreto arrepio de morte; e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita! ...O sol tremeu.

E depois ( como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce.
O cansaço vence os dois viajantes. José Fernandes adormece sob os apelos de Jacinto para que lhe enviasse algumas peças brancas e lhe reservasse alojamento em um bom hotel de Lisboa. Uma semana depois que José Fernandes havia partido para Guiães, recebeu suas malas e imediatamente enviou um telegrama para Lisboa, endereçado ao hotel Bragança, agradecendo pela bagagem que foi encontrada e alegrando-se pelo amigo estar novamente gozando os privilégios de seres civilizados.

No entanto, não obteve resposta. Certo dia, o narrador voltando de Flor da Malva, da casa de sua prima Joaninha, parou na venda de Manuel Rico, e ficou sabendo algo surpreendente através do sobrinho de Melchior: Jacinto permanecia em Tormes já há cinco semanas. Ao visitar Jacinto, José Fernandes o encontrou totalmente mudado, física e mentalmente. Nada nele denunciava um homem franzino; estava encorpado, corado, como um verdadeiro montês.
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas - como Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
- Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, imensamente divertido:
- Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato.
Um homem de bem com a vida
Era um outro Jacinto a quem o campo já não mais era insignificante. Cada momento novo era uma nova e alegre descoberta. Enfim, era um homem de bem com a sua vida. Aproveitando a presença do amigo, Jacinto providenciou a transladação dos corpos de seus antepassados para a Capelinha da Carriça, agora reconstruída.

Zé Fernandes, hábil observador do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava em ser o apreciador passivo dos encantos da natureza. Ele queria participar de tudo, e lhe surgiam grandes idéias como encher pastos, construir currais perfeitos, máquinas para produzir queijos...
Certo dia, ao percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma criança muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. A partir desse momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a se preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir casa, dar novo alento à vida dos humildes.

Em uma das inúmeras visitas que lhe fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de civilização naqueles cantos tão rústicos. O povo da região começou a agradecer as benfeitorias e logo passou a circular a lenda que o senhor de Tormes era D. Sebastião que havia voltado para ressuscitar Portugal.
Convidado por Zé Fernandes para o aniversário de tia Vicência, Jacinto encontraria aí a oportunidade de conhecer seus vizinhos, outros proprietários. No entanto, a recepção não foi aquilo que o narrador esperava. Havia uma frieza por parte dos habitantes da região, exceto tia Vicência que o recebeu como verdadeiro sobrinho.

Ao terminarem a ceia, vieram a saber porquê daquela frieza: eles pensavam que o senhor de Tormes fosse miguelista como o avô e que pretendia restituir D. Miguel ao poder.
E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos, que lhe valiam a alcunha de "Dr. Agudos:" - ‘Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de novo a forca!...’

E o mesmo fino olhar me indicava a D. Teotônio, que arrastara Jacinto para entre as cortinas de uma janela, e discorria, com um ar de fé e de mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom D. Teotônio considerava Jacinto como um hereditário, ferrenho miguelista, - e na sua inesperada vinda ao solar de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de um a propaganda enérgica, e o primeiro passo para uma tentativa de restauração.

E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio de uma influência rica, novas, nas eleições próximas, e a nascente irritação contra as velhas idéias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização tão superior.

Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o Melo Rebelo, que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o "Dr. Agudo".
Este jantar serviu de pretexto para o narrador mostrar a mentalidade atrasada da sociedade serrana e aquilo que a fazia sorrir Jacinto era, na verdade, um abismo entre a ignorância e o progresso. A serra estava impregnada de uma mentalidade retrógrada, ainda absolutista, enquanto no final do século polvilhavam novas teorias e doutrinas filosóficas e políticas. Tentou-se ainda um jogo de voltarete para animar a noite, mas a ameaça de uma a tempestade levou os convidados a baterem em retirada.
A manhã seguinte estava fresca e clara,. José Fernandes levou o amigo até Flor da Malva, para visitar sua prima Joaninha que não pudera comparecer à reunião, pois o pai, Adrião, estava acamado. No caminho, encontraram João Torrado, um velho eremita que supôs estar diante de D. Sebastião.

Esta figura ilustrava o lado da profundidade do mito na mentalidade simples, saudando Jacinto como um profeta, e tratando-o como "pai dos pobres". Nele estão representadas a sabedoria e a simplicidade do povo.
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despregar de Jacinto os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara, embaraçado.
- Pois aqui tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.

O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase negro, de uma manga muito curta.
- A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longamente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
- Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!

Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com aponta do cajado no chão:
- Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:

- Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei?D. Sebastião voltará?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada barba sobre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:
- Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem.
A chegada a Flor de Malva prepara o desfecho do romance. Joaninha, que não se apresenta sequer ruma fala na narrativa, jovem de uma formosura ímpar estaria destinada a ser a senhora de Tormes.
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos eus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminoso olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta cima uma camisinha, de grandes laços azuis.

E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira já de rosas.
Cinco anos se passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas terras duas fidalgas crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Paris enfim chegaram a Tormes e serviam para demonstrar o total equilíbrio do protagonista, aproveitando o que poderia ser aproveitado e desprezando as inutilidades da civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: Sua Excelência brotara". Certamente Jacinto descobrira seus melhores valores: era feliz e fazia os outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa para conhecer o 202 e a civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro, era sempre adiado.
Quem voltou a Paris foi Zé Fernandes e lá, sentindo-se abandonado e entendiado, descobriu uma porção de fantoches a viverem uma vida falsa e mesquinha.

Percebeu que os antigos conhecidos eram seres frágeis e vazios, idênticos entre si e massas impessoais, amorfas, feitas para agradar ou desagradar os outros conforme seus interesses. Não suportando a cidade, retornou a Portugal. Este serrano que anteriormente valorizava os encantos da civilização foi tomado pelos mesmos sentimentos de Jacinto e confirmou uma simples verdade: no fundo, reabilitou Eça de Queirós com o seu Portugal.
Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartava havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde, de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro de morno de alcova, e de pó-de-arroz, de entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique, como rendas de camisas.

Ao jantar, em qualquer restaurante, encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo molho, de cores e sabores de pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e dourejado, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei por grosso preços garrafas do nosso rascante e rústico vinho de Torres, enobrecido com o título de Chatêaou-isto, Château-aquilo, e pó postiço no gargalo.

À noite, nos teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai as moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo pilhérias senis.

Esta sordidez da planície me levou a procurar melhor aragem de espírito nas alturas da Colina, em Montmartre; - e aí, no meio de uma multidão elegante de senhoras, de duquesas, de generais , de todo o lato pessoal da cidade, eu recebia, do alto do placo, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer de gozo as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes de Worms e de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas.

E recolhia enjoado com, tanto relento de alcova, vagamente dispéptico com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente comigo, por me não divertir, não compreender a cidade, e errar através dela e da sua civilização superior, com reserva ridícula de um censor, de um Catão austero. "Oh senhores!", pensava eu "pois não me divertirei nesta deliciosa cidade?" Entrara comigo no bolor da velhice?

A Cidade e as Serras

A Cidade e as Serras

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
A cidade e as serras é um romance de Eça de Queiroz. Este romance pertence à última fase do escritor, onde se afasta do realismo e deixa a crítica pesada que fazia à sociedade portuguesa da época. O próprio título já indica sobre o enredo. Neste livro, Eça faz uma comparação entre a vida módica e agitada de Paris e a vida tranqüila e pacata na cidade serrana de Tormes.
Enredo
O romance A Cidade e as Serras, publicado em 1902, é desenvolvimento do conto “Civilização”, de Eça de Queirós. Uma personagem, José (“Zé”) Fernandes, relata a história do protagonista Jacinto de Tormes. Na composição são destacados os episódios diretamente relacionados coma personagem principal, ficando os fatos da história de Zé Fernandes apenas como elos de ligação da história vivida por Jacinto. Desde o início, o narrador apresenta um ponto de vista firme, depreciando a civilização da cidade.
Na primeira parte da narrativa, Zé Fernandes justifica sua aproximação de Jacinto (o “Príncipe da Grã-Ventura”), ligando-se a ele por amizade fraternal em Paris. Jacinto nascera e sempre morara em um palácio, nos Campos Elíseos, número 202. A mudança de sua família de Tormes, Portugal, para Paris deveu-se a seu avô Jacinto Galião. Seu neto, ao contrário do pai, que morrera tuberculoso, foi sempre fisicamente forte e, além de rico, era inteligente, voltando toda sua atividade para o conhecimento. Mas detestava o campo e amontoara em seu palácio, em livros, toda a conquista das filosofias e ciências, além dos aparelhos tecnicamente mais sofisticados da época. E, para Jacinto, “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”.
Zé Fernandes era decididamente contrário a essa orientação tecnicista e mecanizada e vai registrando como Jacinto rompe totalmente com seu passado campesino, deteriorando-se na cidade. A regeneração só ocorrerá com uma atitude assumida por Jacinto, já na segunda parte da narrativa – nas serras.
Um dia Jacinto, enfastiado da vida urbana, participa a Zé Fernandes sua partida para Portugal, a pretexto de reconstruir sua casa em Tormes, deslocando para lá os confortos do palácio. Entretanto, o criado Grilo perde-se com as bagagens, que, por engano, foram remetidas para Alba de Tormes, Espanha. Assim o supercivilizado Jacinto chega a Tormes apenas com a roupa do corpo.
Em contato estreito com a natureza, Jacinto renova-se, primeiro liricamente, numa atitude de encantamento, integrando-se depois na vida produtiva do campo, quando aplica seus conhecimentos técnicos científicos à situação concreta de Tormes.
Sem romper totalmente com os valores da “civilização”, Jacinto adapta o que pode ao campo. Modernizam-se dessa forma as serras, algumas reformas sociais são introduzidas e a produtividade aumenta. Ao príncipe da Grã-Ventura, só faltava um lar, o que ocorre em seguida, por meio de seu casamento com a prima de Zé Fernandes, Joaninha. Assim completamente feliz, no cotidiano das serras, Jacinto não mais volta a Paris, e esquece as companhias parisienses, como do grã-duque Casimiro, a condessa de Tréves, o conde de Tréves, o banqueiro judeu Efraim, madame Oriol e outros.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Seminário


BIBLIOGRAFIA: ARANHA,MARIA LUCIA DE ARRUDA & MARTINS, MARIA HELENA PIRES. FILOSOFANDO: INTRODUÇÃO À FILOSOFIA. 3ª ED.REV. SÃO PAULO, ED. MODERNA, 2003.



TODOS OS ALUNOS/AS devem ler as páginas 275 até 277 do livro de história para assistirem aos seminários.

terça-feira, 3 de maio de 2011

2° Portfólio

Nome:
Ens. Médio __
Data: ___/___/2011
Disciplina: Técnicas de Redação
Professor(a): Lane Ferreira
NOTA:


2º. Portfólio – 2011 – Instruções (Este trabalho será avaliado pelas professoras Lane, Heloisa e Solange, a nota destina-se às disciplinas ministradas por estas professoras)

TEMAS : Cultura Africana e Cultura Indígena

1ª. Parte do trabalho: Pesquisar em livros, enciclopédias, jornais, entrevistas ou na internet (Trazer a pesquisa para a sala de aula no dia da Redação para ser consultada)
·          Costumes
·          Tradições
·          Lazer
·          Economia
·          Saúde
·          Educação
·          Curiosidades

 Pesquisar estas etnias:

Indígenas
·          Yanomami -  Região Norte do Brasil.
·          Guarani Mbya - Região Sul/Sudeste do Brasil.
·          Kamaiurá - Região Centro-Oeste do Brasil - Parque Indígena do Xingú.
·          Canela - Região Nordeste do Brasil.

Site: www.socioambiental.org (Orientação da Prof. Solange)


2º. Parte do trabalho: Redação – Será feita em aula com um dos temas pesquisados (por sorteio)
                

Na correção da Redação do Portfólio serão avaliados os seguintes itens:

Fuga do tema (avaliação zerada)
Título
Texto parafraseado
Texto ilegível
Texto com menos de 15 linhas (avaliação zerada)
Paragrafação
Ortografia
Pontuação
Acentuação
Coerência
Coesão
Inadequação de vocabulário
Concordância Verbal
Concordância Nominal
Colocação pronominal
Letra maiúscula no lugar de minúscula
Letra minúscula no lugar de maiúscula
Letra distorcida
Colocação da preposição inadequada
Uso de gírias
Repetição de palavras
Separação de sílabas
Linguagem informal
Rasuras

As avaliações serão realizadas nas aulas de Técnicas de Redação, seguindo o seguinte horário
1º. A  -  16/06/2011
1º. B  -  17/06/2011
1º. C  -  14/06/2011
2º. A  -  22/06/2011
2º. B  -  14/06/2011
2º. C  -  20/06/2011
3º. A  -  16/06/2011
3º. B  -  17/06/2011

                                                                                                                             Profs. Lane/ Heloisa/ Solange

quinta-feira, 31 de março de 2011

Vídeos

Vídeos sobre as construções bandeiristas e os bandeirantes

.Disponível em: il.youtube.com/watch?v=XL9I_bpFckY (Casas Bandeiristas, Módulo didático: taipa)


Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KNkW_pK2jVI  (Casas Bandeiristas, Módulo didático: contexto histórico).
Atenção
Entrega dos portfolios dos n° pares pro dia 01/04/2011
Entrega dos portfolios dos n° impares pro dia 04/04/2011

terça-feira, 29 de março de 2011

Historia - Árabes , muçulmanos e islâmicos

História

Árabes, muçulmanos e islâmicos
Se você está atento às notícias na TV, nos jornais ou na internet, principalmente nos assuntos ligados aos conflitos Árabe-Israelenses ou à Guerra do Iraque, entre muitos outros, com certeza já se deparou com termos como árabe, muçulmano ou islâmico. No entanto, o que esses termos significam? Existem diferenças entre eles? Se sim, quais? É justamente essas questões que vamos tentar resolver aqui.
Vamos começar pelo termo islâmico. Esse termo se refere aos seguidores do Islamismo, que é uma  religião criada no século VII d.c. por Maomé e que hoje conta com seguidores no mundo todo. Portanto, islâmico é todo seguidor da religião Islâmica,assim como os seguidores do Cristianismo são chamados de cristãos e os adeptos do Judaísmo de judeus.
 Mapa do Islamismo pelo mundo

Muçulmano é apenas um sinônimo de islâmico, não havendo nenhuma diferença entre os termos. Portanto, se você ouvir alguém dizer que é muçulmano, isso significa que essa pessoa é islâmica, ou seja, seguidora do Islamismo.
O termo árabe se refere a uma etnia, ou seja, à etnia árabe, que é caracterizada pela língua árabe. Assim, todos os povos que têm a língua árabe como oficial podem ser chamados de árabes. Como exemplo, podemos citar os iraquianos, os egípcios, os marroquinos, os palestinos, os sauditas, entre muitos outros.
 Aqui vemos a cidade de Meca, na Arábia Saudita, considerado o lugar mais sagrado do Islamismo

Nós devemos, portanto, ter em mente que islâmico e muçulmano são referentes a uma religião, enquanto árabe é referente a uma etnia. Essa confusão se dá porque a religião islâmica foi criada pelo povo árabe, e entre esse povo o islamismo ganhou muitos adeptos. No entanto, devemos lembrar que nem todo muçulmano (ou islâmico) é árabe. Os turcos, os iranianos e os afegãos são povos muçulmanos, mas não árabes. Isso porque não falam a língua árabe. O país que possui a maior população muçulmana do mundo é a Indonésia, que também não é árabe. Devemos ainda lembrar que na Europa, há diversos povos muçulmanos, como é o caso dos Albaneses, dos Bósnios, dos Chechenos. Além disso, há muitos imigrantes muçulmanos em países como França, Alemanha e Inglaterra.
Agora sabemos que nem todo muçulmano é árabe. No entanto, todo árabe é muçulmano? A resposta para essa pergunta é não. Apesar de a maioria dos povos árabes professarem o islamismo, há o caso do Líbano e da Síria, que apesar de serem países árabes – já que têm o árabe como língua oficial – e terem a maior parte de suas populações seguidoras do Islamismo, os dois países possuem uma expressiva parcela de sua população que é adepta do Cristianismo. Ou seja, nesses países existem muitos árabes que não são muçulmanos, já que não seguem o Islamismo.
 Muçulmanos orando em Cabul, Afeganistão

Você já sabe, então, que islâmico e muçulmano são palavras sinônimas, mas que, apesar de estarem associadas ao termo árabe, não têm o mesmo significado. Caso você tenha alguma dúvida se determinado povo é ou não árabe, confira em um Atlas Geográfico a língua que eles falam e você terá a resposta.
Vale lembrar ainda que no Brasil, há o costume de referir-se aos imigrantes árabes em geral como turcos, no entanto, isso é um equívoco, uma vez que, como já dissemos, os turcos são muçulmanos, mas não são árabes, uma vez que não falam a língua árabe. Esse equívoco se deu porque quando os primeiros imigrantes vindos da Síria e do Líbano, países árabes, chegaram ao Brasil, esses países estavam sob o domínio do Império Turco-Otomano, e portanto, esses imigrantes entravam no Brasil registrados como turcos, por isso então criou-se o costume de referir-se a todos esses imigrantes como turcos. No entanto, hoje esses países são independentes, e devemos desfazer esse equívoco, lembrando que um libanês não deve ser chamado de turco, por tratar-se de povos distintos.

http://clickeaprenda.uol.com.br/mostraConteudo.action?nivel=m&codigoPagina=NOT0806230401